terça-feira, 8 de dezembro de 2009

CAPÍTULO III - O ESTADO: CARACTERES DISTINTIVOS. ORGANIZAÇÃO DA AUTORIDADE NO ESTADO. COATIVIDADE DAS NORMAS ESTATAIS. DEFINIÇÃO


Várias têm sido as tentativas de se definir o Estado mas, dada a diversidade de doutrinas que procuram justificar sua existência, ora com prevalência de elementos naturais de agregação humana, ora dando ênfase à noção de força cogente das ações humanas, ora, ainda, ressaltando a natureza jurídica de sua organização, impossível se torna obter-se unanimidade a respeito de seu conceito. A respeito, observa DALMO DALLARI que essa extrema variedade de conceitos é desconcertante a ponto de parecer impossível a muitos estudiosos construir qualquer teoria sobre base tão insegura. Tanto que ao indagar-se sobre o que é o Estado, DAVID EASTON, se refere a um autor que informa haver coligido nada menos do que cento e quarenta e cinco diferentes definições, observando que “raras vezes os homens discordaram tão acentuadamente sobre um termo”. E, acrescenta o referido EASTON, citado por DALMO DALLARI, a “confusão e variedade de sentidos é tão vasta que é quase inacreditável que durante os últimos dois mil e quinhentos anos em que a questão tem sido repetidamente discutida de uma forma ou de outra, nenhuma espécie de uniformidade tenha sido conseguida”, concluindo, afinal, pelo abandono da idéia de Estado, por sua excessiva fluidez, substituindo-a pela de sistema político.

Veremos, a seu tempo quando tratarmos da origem e da justificação do Estado, as diversas doutrinas de que decorrem os conceitos díspares que deixam perplexos os autores e estudiosos do assunto. Aqui, e agora, procuraremos chegar à definição de Estado que nos foi legada pelo ilustre mestre ATALIBA NOGUEIRA através das anotações de aulas que fizemos quando tivemos a honra de estar entre seus alunos. Assim, e de tudo quanto afirmamos anteriormente, as ordenações jurídicas e as sociedades que elas constituem podem ser muito variadas na sua estrutura e dar lugar a tipos entre si diversos, de acordo com os vários caracteres que possuem ou de que carecem. Interessa-nos, exclusivamente, investigar quais são os caracteres distintivos do Estado.

Em virtude de termos no Estado uma sociedade, a sociedade estatal, constituída sobre a base da ordenação jurídica estatal, a definição de Estado somente pode ser obtida investigando-se quais os traços característicos que apresenta, quer tendo em vista qualquer outra ordenação estatal, quer a correlativa sociedade estatal. Em virtude desse propósito, preliminarmente importa notar que o conceito de Estado é conceito eminentemente empírico, baseado apenas na experiência, resultante do fato dos homens viverem agrupados em sociedade de certo tipo, distinguida não por um só elemento mas, sim, pela concomitante presença de vários elementos, cujo conjunto dá a noção de Estado.

É por isto que não encontramos nenhum nexo lógico entre os vários elementos do Estado, nem existe qualquer exigência racional para que, necessariamente, devam encontrar-se reunidos. Pondo-se de lado exigências práticas, nada impede que, amanhã, os homens vivam em sociedade de outro tipo. Nestes últimos tempos têm feito sentir críticas vivazes contra o Estado e de vários lados se desenhou a oportunidade de substituí-lo por formas associativas de gênero totalmente diferente e às quais já não se poderia aplicar aquela denominação. Tome-se por exemplo a hipótese de os homens se irmanarem sob a fé cristã e instalar-se universalmente o Reino de Deus sobre a Terra, segundo a doutrina social da Igreja...

O Estado, na sua acepção comum e tradicional, apresenta como elemento típico e ao qual importa dar relevo principal, o fato de que ele é uma sociedade, como se denomina usualmente, política, ou, então, como mais recentemente denominam outros, sociedade total. Se encararmos a maior parte das outras sociedades ou associações, como as sociedades comerciais ou associações culturais ou, ainda, para buscar exemplo no campo internacional, a Organização das Nações Unidas, notaremos que cada uma dessas instituições foi criada para atingir uma particular e característica finalidade: propõe-se cada uma delas realizar um escopo bem delimitado, isolado e preciso. É lhe vedado assumir outros encargos ou, se os assumisse, isso implicaria a modificação em sua própria estrutura social, de tal forma que o instituto pareceria ter mudado de natureza.

Diversamente é o que se dá com o Estado. Não tem ele como fim específico nem a administração da justiça, nem a defesa militar, nem a tutela da ordem jurídica, nem a fiscalização da economia. Ainda que se ocupe dessas tarefas e de outras numerosíssimas, aparecem como indefinidas as finalidades do Estado. Quaisquer que sejam as funções que o Estado assuma em dado momento, elas não exaurem jamais a esfera possível de sua atividade, e continuamente o vemos abandonar antigos objetivos e assumir outros novos, conforme as prioridades que estabeleçam. Porisso, é o Estado a comunidade política de fins gerais e não voltado para a finalidade específica. Isso não significa que os fins do Estado sejam indeterminados e incertos, de tal maneira que quando se constitui o Estado não se saiba a que deva ele exatamente servir. Surge o Estado, sim, com fim preciso e determinado: REGULAR GLOBALMENTE, EM TODOS OS ASPECTOS, A VIDA SOCIAL DE DADA COMUNIDADE.

Surge o Estado, pois, com o propósito ambicioso de monopolizar a vida social inteira de dado grupo humano e de colocar-se como seu único regulador. Não se ignora que ao lado do Estado existem outras sociedades, por exemplo, as províncias, os municípios, as sociedades comerciais, as várias associações. Toda outra vida social se desenvolve sob a égide do Estado e no Estado encontra o seu fundamento e seu limite. Pretende sempre o Estado que não escape à sua autoridade ou ao seu poder nada de quanto pertence às realizações sociais dos homens. Podem constituir-se vínculos sociais de todo independentes do Estado e estranhos à esfera: surgem eles, porém, individualmente, em antítese com o Estado e em contraste com ele. Havemos de ver as poucas exceções a este princípio, particularmente em matéria religiosa.


Tende, dessa forma, o Estado a exaurir toda a esfera das relações sociais, tornando-se quando menos, o seu arbítrio. Trata-se, todavia, de simples tendência jamais realizada, nem mesmo no Estado moderno ou moderníssimo que dela mais se avizinhou. Devido à lição de alguns dentre os mais eminentes cultores de direito público, principalmente SANTI ROMANO, não nos enganamos com a aparência e sabemos que mesmo em nossos tempos existem e podem existir outras comunidades fora e independentes do Estado. Seja como for, importa por ora salientar que não se podem assinar como específicos do Estado estes ou aqueles fins, mas que a sua característica ao contrário é a de pré-fixar, como escopo único, o regulamento único, o regulamento completo de toda a vida social da comunidade, pelo que havemos de ver o Estado dirigir a sua atividade ora em um sentido, ora em outro, de acordo com as circunstâncias de certas matérias serem ou haverem cessado de ser ou se tornado de utilidade social antes que de interesse individual.

O Estado é, repita-se, uma comunidade política. Para a consecução de sua finalidade de regular globalmente, em todos os seus aspectos, a vida social da comunidade, intromete-se em toda a vida dos homens, de modo que a ordenação estatal é fator potentíssimo de coesão humana e, ao mesmo tempo, de distinção entre os que lhe são sujeitos e os que lhe não são sujeitos. De fato, não surge o Estado para regular a vida da humanidade inteira: dirige-se a um círculo determinado de indivíduos que constituem grupo, sociedade que através da marca comum que recebem da ordenação estatal, podem afigurar-se como unidade e ter denominação coletiva: povo. São, pois, as pessoas submetidas à ação do Estado um elemento essencial à própria existência do Estado, De fato, nenhuma ordenação jurídica é possível sem a presença dos indivíduos a que se dirigem as suas normas.

Importa, ainda, acrescentar que o Estado não pode ser definido somente pela ordenação destinada a regular de modo total as relações sociais de determinado agrupamento humano; importa considerar ainda que deve tratar-se de um agrupamento humano fixado estavelmente num dado território. As tribos nômades, ainda que apresentem todos os outros atributos de Estado, não constituem Estado pela falta de sede fixa. Segue-se, pois, que a presença do território tem importância substancial, para a afirmação da existência do Estado.

Pelo fim e pelo meio se distinguem, outrossim, as sociedades. O complexo das normas que compõem a ordenação jurídica e, baseada nesta, a sociedade, é sempre, como é evidente, instituído para atingir alguma finalidade. Não seriam editadas as normas, não seriam observadas, não entrariam em função, se não servissem a algum escopo. Por isto, as ordenações jurídicas se caracterizam, antes de mais nada, de acordo com o escopo que buscam realizar; quais sejam as finalidades características daquela ordenação - a estatal - já examinamos. Mas, a ordenação jurídica, criando uma sociedade, necessariamente a organiza tendo em vista os objetivos pelos quais é criada e de modo que possa atuá-los. É absurdo falar de uma sociedade desorganizada e quando tais expressões são adotadas, quer-se apenas estabelecer o confronto entre certas sociedades, mais e melhor organizadas, com outras que em comparação com as primeiras, se possam dizer desorganizadas, as quais, porém, possuem ao menos organização rudimentar e simples. Não apenas de acordo com as suas finalidades as ordenações jurídicas podem, portanto, distinguir-se, mas, também, quanto ao meio que empregam e, mesmo, quanto à organização social que criam para a consecução daquelas finalidades. Também a este propósito o Estado oferece caracteres peculiares e precisos.

Para que haja o Estado, ocorre que a ordenação jurídica crie uma organização apropriada, distinta da massa dos consórcios encarregados de prover a realização dos escopos sociais e dotada de autoridade de “imperium” no interior da própria sociedade. Em cada Estado há toda uma série de indivíduos e de órgãos, os quais agem em nome do Estado e desenvolvem um trabalho intenso e contínuo, a fim de que os escopos próprios do Estado sejam atingidos: Câmaras legislativas, ministérios, prefeituras, repartições, etc..., estão continuamente em trabalho para desenvolver a multiforme atividade que caracteriza o Estado moderno. Eis aqui outra característica fundamental do Estado. Todavia, no interior do Estado não há apenas este organismo público instituído permanentemente para a consecução das finalidades sociais. Tem ele, além deste, alguns característicos peculiares. Já se acenou ser tal organização investida de “imperium”, de poder de comando: pode dar ordens, as quais, consoante organização jurídica, hão de ser obedecidas; há de ser dotada de poderes amplos para assegurar a realização dos escopos sociais.

No Estado é bem clara a distinção entre governantes e governados, entre os que mandam e os que obedecem; há sempre um poder de comando confiado a alguém (a uma coletividade, a um indivíduo, a um órgão) e este alguém é que garante o funcionamento ativo e intenso do próprio Estado. Ocorre aqui o problema da chamada coatividade das normas jurídicas. Afirma-se que as normas, para serem jurídicas, hão de ser coativas ou, como dizem outros, providas de sanção. Os comandos do Estado seriam normas jurídicas por excelência ou, corretamente, as únicas normas jurídicas, pela circunstância de serem providas de sanção e de um aparelho coercitivo que lhes assegura a execução regular. O problema aqui acenado, porém, é mais vasto. Sobre ele ainda teremos oportunidade de voltarmos quando estudarmos as relações entre a força e o direito. Desde já, no entanto, podemos acentuar que se deve entender por Estado a ordenação jurídica realmente existente e atuante, capaz de atingir seus objetivos ou, melhor, uma ordenação jurídica positiva, de acordo com a palavra técnica empregada para designar a ordenação cujas normas, de fato, são editadas e observadas e cujos fins efetivamente se realizam. Ora, na prática pode afirmar-se que a coação é para o Estado uma exigência imprescindível. Dados os objetivos que se propõe o Estado, os sacrifícios individuais que requer, a harmonia que busca atuar no interior do grupo social, é necessário que haja sanção para a inobservância das regras, e processos coercitivos para a aplicação das sanções, porquanto, de outro modo, as normas estatais não teriam suficiente observância e os objetivos não seriam atingidos.

Considerando-se de um lado a natureza dos objetivos do Estado e, de outro, a natureza humana, sanção e coerção podem parecer necessárias para a própria vida do Estado. Trata-se, como se observa de pronto, de verificação de fato contingente, nada impedindo pensar-se que se as condições fossem melhores e mudasse, por exemplo, a mentalidade dos homens e reunisse a mais escrupulosa honestidade e a observância espontânea das normas do Estado, a organização do Estado poderia resultar inteiramente outra e com toda a possibilidade de eliminar, por inútil, o conjunto de sanções e coerções. Nem por isto, desapareceria o Estado ou se poderia dizer que o Estado seria substituído por outra entidade, se as funções, os objetivos, as finalidades, os limites, etc., do Estado permanecessem os mesmos.

Por outro lado, se seguirmos a opinião pela qual o Estado existe só enquanto há necessidade de sanções e coerções, resultaria que o Estado encontra as razões de sua existência somente na maldade humana e perderia todo significado num mundo hipotético de gente perfeitamente correta, para a qual não fossem necessárias nem sanções nem coerções. Isto seria não aprender o verdadeiro significado do Estado, esquecer que, bons ou maus, os homens, de qualquer modo a sociedade estatal conserva sempre seu significado e sua importância fundamental.

De tudo quanto foi dito, repita-se, seguindo-se “ipsis litteris” os ensinamentos ministrados pelo insigne Mestre ATALIBA NOGUEIRA, através de anotações de aulas “sem a responsabilidade da ilustre cátedra”, com ele formulamos a DEFINIÇÃO DE ESTADO:

“Estado é a ordenação jurídica, cuja finalidade é regular a vida social de um povo, em determinado território, sob governo dotado de autoridade para a realização dos fins sociais ou do bem comum”.

Verifica-se assim que o Estado, antes de ser fim em si mesmo como resulta da dialética hegeliana através da síntese absoluta, o Estado é meio para o homem alcançar o seu pleno destino e conseguir a sua felicidade social em ambiente de paz e progresso, como ressalta ADERSON DE MENEZES (ob. cit., pg. 65). Nesse sentido sob o título “O Estado é Meio e não Fim”, o ilustre Prof. ATALIBA NOGUEIRA, após analisar todas e cada uma das teorias a respeito das finalidades do Estado, conclui sua tese por afirmar “que o indivíduo não foi feito para o Estado, mas sim o Estado para o indivíduo, para o seu bem estar moral e material, para a sua felicidade. Nesta doutrina, do fim intermediário, não existe o Estado que cria o direito, mas o Estado que descobre, reconhece, determina, aplica, sanciona, pondo a seu serviço a coação física. A fonte mais profunda do direito não é a vontade do Estado, mas a exigência da razão, a consciência moral e jurídica da humanidade, o reflexo da imagem divina impresso na alma humana, aquela projeção da lei eterna, donde se origina aquele código natural, anterior e superior a todos os códigos. O direito não nasce com o Estado, mas com o homem. Escrito ou consuetudinário, não deixou nunca de acompanhar o homem. Existe para servir o homem, como também para servir o homem existe o Estado”. Por isso, conclui o Mestre: “O Estado não é fim do homem; sua missão é ajudar o homem a conseguir o seu fim. É meio, visa à ordem externa para a prosperidade dos homens”.

Como a questão da finalidade do Estado está intimamente relacionada com a teoria que se adote a respeito de sua origem e justificação, deixaremos para quando examinarmos a história das doutrinas do Estado o desenvolvimento maior a respeito do tema. Nesse passo, contudo, limitar-nos-emos a fazer referência ao conceito de bem comum e bem público, empregados, geralmente, como sinônimas pela maioria dos autores. Alguns, entretanto, como PORRUA PEREZ, distinguem bem comum, como fim de toda sociedade, e bem público, fim específico da sociedade estatal. De nossa parte, quer porque a expressão bem público se presta a confusão com a coisa pública, quer porque o bem comum é objetivo de toda sociedade mas não seu fim específico, que é sempre particular e determinado, diverso do fim geral da sociedade política estatal, preferimos denominar esse fim geral, ou a finalidade social, como a consecução do bem comum. Daí poder-se concluir, com DALMO DALLARI, que o fim do Estado é o bem comum, entendido este como o conceituou o Papa JOÃO XXIII, ou seja, o conjunto de todas as condições de vida social, que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana. E, se, conforme afirmado, essa mesma finalidade foi atribuída a todas as sociedades, e, principalmente à sociedade humana como um todo, não haverá diferença entre ela, sociedade humana, e o Estado!? A essa indagação, responde DALLARI: “Na verdade, existe uma diferença fundamental que qualifica a finalidade do Estado: este busca o bem comum de um certo povo, situado num determinado território. Assim, pois, o desenvolvimento integral da personalidade dos integrantes desse povo é que deve ser o seu objetivo, o que determina uma concepção particular de bem comum para cada Estado, em função das peculiaridades de cada povo”.

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