sexta-feira, 23 de abril de 2010

CAPÍTULO V - HISTÓRIA DAS DOUTRINAS DO ESTADO: A FILOSOFIA CRISTÃ



O Cristianismo e a Filosofia Escolástica. Se o despertar do homem para o pensamento especulativo marcou um primeiro e mais importante momento na história da Humanidade, o advento do Cristianismo, “fato religioso” por excelência, representou um novo e importante momento na história do comportamento humano em relação à sua existência. A época, porém, em que a ação e influência do Cristianismo se fez mais marcante e absorvente chama-se Idade Média, e à Filosofia que foi a sua mais alta expressão denomina-se Filosofia Escolástica, ou das Escolas, ou, ainda, Filosofia Cristã. Utiliza-se, pois, tal expressão para significar um conjunto de atitudes, problemas e soluções adotadas e perfilhadas a partir, precisamente, duma visão religiosa do mundo e do homem: o Cristianismo.

Surgiu o Cristianismo na história com um pequeno número de doutrinas filosóficas de índole especulativa, embora com um grande número de idéias especialmente morais e religiosas. Encontrou-se, contudo, com a filosofia grega e helenística e teve a necessidade de com ela sustentar uma grande luta: ou rejeitá-la ou aproveitá-la e assimilá-la para se robustecer; ou, tê-la como inimiga ou aliada. Afirmando-se como filosofia, a partir de seus dogmas, nasceu com ela a Teologia cristã. Seu desenvolvimento atravessou três fases bem distintas: a primeira do sec. I até S. AGOSTINHO; a segunda, desde aí até S. TOMÁS DE AQUINO, no século XIII, e, finalmente, a terceira, daí até nossos dias. Na primeira fase prevalece um certo sincronismo (reunião artificial de idéias ou de teses de origens disparatadas) oscilante; na segunda, PLATÃO, o neoplatonismo e os Estóicos; na terceira, embora se combinando com estes elementos, ARISTÓTELES. Dessa forma, as grandes idéias elaboradas através dos séculos pelo pensamento grego foram de sucessivas reelaborações, pouco a pouco, acolhidas e assimiladas pelo Cristianismo e colocadas a serviço da concepção cristã do mundo e da vida. Entre as idéias religiosas e filosóficas que compunham o Cristianismo, naquilo que interessa a nosso estudo, do Estado, destacavam-se: a) a crença num Deus pessoal, pai Todo-Poderoso, criador do mundo e da matéria, e ao mesmo tempo Providência inteligente e ativa, cuja vontade é, ao mesmo tempo, lei e norma para todos os seres criados e b) a crença na existência de uma alma individual absolutamente livre e com um destino eterno, criada a imagem e semelhança de Deus e mantendo com Ele as relações de filho e Pai.

S. PAULO. - Os primeiros cristãos viviam, como se sabe, absorvidos na convicção de um próximo regresso do Senhor e de que o mundo em breve acabaria. Quem marca a nova posição fundamental do Cristianismo perante os problemas da concepção cristã de vida em face do direito e do Estado é o apóstolo PAULO, notadamente em sua Epístola aos Romanos. Com S. PAULO, afirmada a absoluta transcendência de Deus, bem como sua personalidade de essência voluntária insondável e sua onipotência criadora, o direito natural estóico passa a identificar-se com a vontade desse mesmo Deus, tornando-se TEOCÊNTRICO. Daí à idéia de Justiça - intelectualizada entre os gregos e fria entre os judeus - o Cristianismo acrescenta a do amor e caridade como princípio de fé e justificação nas relações entre os homens e Deus, intimizando-os na forma de um apelo a cada homem para a sua salvação. Assim, deixa de ser a Justiça um mero ideal a atingir dentro do Estado para tornar-se efetiva como princípio de relação viva e existencial entre o homem e Deus. O próprio Estado, pois, foi criado por Deus, não havendo poder que não venha d’Ele, e quem resiste ao Estado resiste à ordenação de Deus. Reconhece, assim, o aspecto político da vida, que, aliás, já estava no Evangelho - “a Deus o que é de Deus e a Cesar o que é de Cesar”. Duas são as idéias fundamentais e características de S. Paulo: a) a afirmação do direito e do Estado como manifestação da lei natural e da vontade de Deus; b) a afirmação da idéia de uma comunidade do espírito, como Igreja, implantando-se e crescendo no seio de uma certa e determinada comunidade mais vasta de homens, a partir de uma renovação interior de cada um. Estabelece ele, pois, um traço de união, como ponte de passagem, entre a Antigüidade Clássica e a filosofia cristã da Idade Média, também conhecida como escolástica.

S. AGOSTINHO. - Nascido em 354, no norte da África, de pai pagão e mãe cristã, após uma juventude movimentada, como nos informa JOHÀNES HIRSCHBERGER, Agostinho teve em mãos, enquanto estudava em Cartágo, o livro de Cícero “Hortensius” em que aquele estóico faz um convite ao estudo da filosofia, ficando, assim, como ele próprio deixou registrado, inflamado por “abandonar as coisas terrenas e refugiar-se no Senhor, pois está escrito: “Contigo está a sabedoria: Ora, “acrescenta, amor à sabedoria é o significado da palavra grega Filosofia”. Partiu Agostinho, em sua busca da sabedoria, exatamente do questionamento acerca da verdade. Indagava, ele, então, se não seria melhor abstermo-nos de afirmar, por não podermos atingir a certeza nos nossos conhecimentos, que talvez ela não existe, sendo assim melhor nos contentarmos com “opiniões” de cuja relatividade temos idéias claras? Não era isso que ensinavam os Cépticos? Para responder-se a tais questões, deixa de lado “verdades transcendentais” e se fixa em fatos de evidência imediata, nos dados da consciência, como aconteceria mais tarde com Descartes. Afirmando que do mundo exterior da consciência podemos duvidar, pergunta: “quem duvidará que vive, lembra-se, entende, quer, pensa, conhece e julga? Pois, se duvida, vive...; se duvida, sabe que não sabe com certeza; se duvida, sabe que não pode dar o seu assentimento temerariamente. E ainda que duvide de tudo o mais, disto não deve duvidar; porque se essas coisas não existissem, seria impossível a dúvida”. Ou, ainda, “se me engano, sei que existo, pois, se me engano é que existo”. Descobriu, assim, AGOSTINHO um novo gênero de verdades: as verdades da consciência. Qual seria, então, a fonte da verdade? Segundo ele, essa fonte não pode estar na experiência sensível, pois o mundo dos corpos é mutável, como já o afirmavam Heráclito e Platão. A partir da idéia de alma, que seria “uma determinada substância racional, que existe para governar o corpo, e não apenas dar-lhe forma, como pensava Aristóteles, e, assim, que o homem é “uma alma racional, que usa de um corpo mortal e terreno”, diz que a “alma não recebe passivamente as impressões dos sentidos, mas as submete à sua atividade própria”, contendo “em si mesma regras para a sensibilidade e as idéias, que lhe servem de medida, como se pode ver, p. ex. com a idéia de unidade” que não procederia por abstração da sensibilidade eis que todos os corpos são infinitamente divisíveis. Se não conhecessemos a unidade não poderíamos pensar na multiplicidade. Daí foi levado a buscar a fonte da verdade no espírito do homem. “Não procures fora! Volta-te para ti mesmo! No interior do homem é que habita a verdade. E se achares que também a tua própria natureza é mutável, então transcende-te a ti mesmo”, afirmava. Cria, assim, a teoria da iluminação, pensando uma “iluminação pela qual a verdade é infundida e irradiada no espírito por Deus, sem que isso seja revelação sobrenatural mas, sim, um fato perfeitamente natural”. O homem possui uma alma e esta é uma substância e pode ser demostrada essa substância pela análise da consciência do eu, pela qual se verifica a realidade do eu, sua independência e duração. A realidade do eu (Ego) é imediata, pois “existo”. A sua independência nos é mostrada pela comparação do eu com seus atos (id), ou do eu conhecedor e do eu conhecido. Diz S. Agostinho: “Estas três potências - a memória, o pensamento e o amor - me pertencem a mim, e não a si mesmos; elas fazem o que fazem, não para elas próprias, mas para mim; antes, por elas que eu sou ativo... Em suma, é por mim que a memória se lembra, por mim que o intelecto pensa, por mim o amor ama. Mas nem por isso eu sou a memória, o intelecto e o amor; não, eu os possuo”. A duração desse eu, diverso dos seus atos, é permanente, sempre o mesmo. E esse ser independente, permanente, real é que chamamos de consciência. Ora, se as verdades são eternas e imutáveis, e a fonte da verdade são os dados da consciência que está intimamente ligada ao espírito humano, deve a alma, também, ser eterna. De fato, se é pelo eu vivo que nós nos lembramos, pensamos, queremos e amamos, isso supõe uma inseparável união com a verdade e os valores. Através da teoria da iluminação S. AGOSTINHO afirma que a “nossa razão vê imediatamente as Idéias no espírito de Deus, chegando-nos assim a uma verdade necessária, imutável, eterna. De fato, o espírito humano não a possui como de si próprio, eis que pertence a um fundamento mais profundo - o espírito divino - criador do céu e da terra. Em conclusão: Deus é infinito e eterno. Na mente divina existem as razões eternas, as idéias imutáveis de todas as realidades contingentes, e as quais os homens chegam vivendo segundo o espírito, em busca da justiça, ou o Amor de Deus.

Retomando a idéia de S. PAULO, acerca da Igreja, ou comunidade dos santos, AGOSTINHO considera a história da humanidade como de uma luta entre duas forças, ou grandezas, de essência metafísica: a “civitas Dei” (Cidade de Deus) e a “civitas terrena” ou “diaboli”. Seria a cidade de Deus a comunidade de todos aqueles que neste mundo vivem segundo o espírito e buscam a justiça (amor Dei), numa antecipação da verdadeira cidade dos santos que só pode realizar-se na outra vida ou no “reino dos céus”. Por outro lado, a “civitas terrena” não é mais do que a comunidade dos que vivem segundo a carne e unicamente para a satisfação dos seus apetites de concupiscência e de domínio (amor sui). Não se encontra, pois, em tais conceitos uma divisão entre Igreja e Estado, sendo a primeira a “civitas Dei” e o segundo a “civitas terrena”, mesmo porque, em ambas, coexistiriam, em verdade, as duas espécies de indivíduos.

O Estado, para S. AGOSTINHO, é natural: “o povo é a massa dos seres racionais que se reúnem levados por uma unidade concorde na voluntária prossecução dos seus fins”, afirma ele em sua “De civitas Dei”. O Estado, pois, não é assim necessariamente, como forma de vida civil, um mal resultante do “pecado original”, de modo que se este não fora, não existiria. Em verdade, S. AGOSTINHO conclui que o Estado existiria mesmo sem o pecado, como condição de vida dos homens em comum, criada e querida por Deus para a realização da paz, da justiça e bem assim das condições necessárias para eles alcançarem, desde este mundo, a realização do seu destino eterno. Mantendo, pois, platônica e dualisticamente, a distinção entre a idéia e a realidade empírica, AGOSTINHO propunha-se a transformar o Estado (que em si mesmo não é nem bom, nem mau) numa comunidade de paz e justiça entre os homens e, como tal, num meio de realização neste mundo da “civitas Dei” pela sua total conversão ao Cristianismo e subordinação à Igreja.

S. TOMÁS DE AQUINO. - O período que vai da morte de AGOSTINHO, em 430, até o surgimento da filosofia escolástica, com CARLOS MAGNO e a partir do sec. IX, a Europa viveu um estadio de ignorância e de trevas. Os bárbaros irromperam de todos os lados, criando novas condições políticas e sociais, de todo em todo contrárias à conservação e desenvolvimento da cultura ocidental. Esta recolheu-se aos mosteiros à espera de tempos melhores para desenvolver-se. A atividade da Igreja, então, concentrou-se em humanizar e cristianizar os invasores, sendo que desse ingente trabalho resultou a moderna civilização ocidental. A época, pois, era de reconstrução a que se entregaram os escolásticos e dentre eles, com maior destaque, a figura de S. TOMÁS DE AQUINO, nascido em fins de 1.224. Em sua obra, de que se sobressai a “Suma Teológica”, S. TOMÁS rompe com todas as doutrinas que não se harmonizam com a filosofia de ARISTÓTELES. Aceita as teses da razão eterna e da iluminação de S. AGOSTINHO mas as transforma a partir dos conceitos aristotélicos do conhecimento. Como ARISTÓTELES, ensina que “é natural ao homem chegar, pelos sensíveis, aos inteligíveis, porque todo nosso conhecimento começa pelos sentidos”. Assim, “pela natureza das coisas sensíveis subimos a um certo conhecimento das coisas supra-sensíveis”. Por isso, a natureza da pedra só nos é dada pelo exame de uma determinada pedra; a do cavalo, pelo de um determinado cavalo. Desse modo, o nosso pensamento considera sempre o universal em dependência da experiência sensível. Mas, esclarece o filósofo, “não se pode dizer que o conhecimento sensível seja a causa perfeita e total do conhecimento intelectual”, ele é antes a matéria da causa desse conhecimento. Como afirmaria KANT mais tarde, “embora todo o nosso conhecimento suponha a experiência”, não é só esta a origem de ARISTÓTELES, o conhecimento não se perfaz com a apreensão da essência, mas com o juízo, sendo a verdade a “adequação entre o pensamento e a coisa” de modo que “consiste em dizer que o que é é, e o que não é não é”.

Prova S. TOMÁS, com as “cinco vias para Deus”, a Sua existência como coisa Universal e princípio da conservação do mundo: o mundo depende de Deus, não somente para começar a existir, mas sempre. Enquanto para S. AGOSTINHO Deus é essencialmente vontade, não sendo o bem senão a simples manifestação de seu querer indeterminista, em S. TOMÁS predomina uma orientação oposta: Deus é antes de tudo um ser de natureza intelectual, não sendo o bem essencialmente senão a manifestação de Sua vontade, harmônica com essa natureza; em vez de ser o bem aquilo que Deus quer, só porque o quer, segue-se que Deus não pode deixar de querer o bem, só porque este é o bem. Daí sua concepção de Ética e direito seguir o sistema de ARISTÓTELES, para quem a lei era, não a expressão de uma vontade, mas produto da razão. Existe um Direito natural. O Logos ou a inteligência divina, essência da divindade criadora (Deus) à semelhança da qual o homem foi criado, é assim simultaneamente princípio regulador e normativo da atividade deste, como Lei natural. No fundo de sua consciência o homem tem naturalmente uma voz ou intuição da lei moral, ou da conduta humana.

O Estado, ou a civitas, ou respublica, segundo S. TOMÁS DE AQUINO, é aristotelicamente uma realidade tão natural como a família e as outras formas intermediárias de convivência. O homem é um “naturaliter sociale animal”. E assim é na medida em que a Lei eterna que assim dispôs as coisas é ao mesmo tempo a expressão da inteligência e da vontade de Deus. O Estado, como comunidade perfeita para bastar-se a si mesmo não é, contudo, uma simples multidão ou agregado humano; constitui antes um autêntico ser distinto de seus integrantes. É o resultado de uma forma aplicada a uma matéria, em que esta última é representada pelos indivíduos e a forma por uma ordem que os unifica dentro de um todo. E em vez de o seu fim ser tão somente a tranqüilidade e a paz, como prenúncio de uma vida numa “civitas Dei”, é ele algo mais de positivo, ou o bem comum. É, pois, um fim muito mais deste mundo e consiste, antes de mais nada, em garantir o bem estar material imposto pelo seu instinto de conservação, para que, garantido este, ele possa depois tratar dos seus fins eternos de ordem supra-sensível.

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